segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Nem tão virgem assim

Matéria publicada na Revista Veja em 28/01/2012.

Em novo livro, o jornalista americano Tom Mueller revela como os maiores produtores do mundo ganham muito dinheiro misturando óleos de variados tipos com o caro azeite de oliva. Adulteração também ocorre no Brasil.

Em agosto de 1991, um cargueiro turco levou 22 toneladas de óleo de amêndoas do porto de Ordu, na Turquia, à região de Puglia, no sul da Itália. Os documentos oficiais diziam que o navio trazia o mais puro azeite de oliva grego. Possivelmente com a ajuda de oficiais, o óleo de amêndoas passou pela alfândega e foi entregue à refinaria de Riolio, um produtor de azeite italiano. Misturado ao produto legítimo, foi vendido para o comércio local como azeite de oliva da mais nobre categoria: extravirgem.

O caso do cargueiro turco integra um milionário esquema de adulteração de azeite montado na Itália, um dos maiores consumidores do produto no mundo. Os bastidores das fraudes são descritos com detalhes pelo jornalista americano Tom Mueller no livro Extra Virginity: The Sublime and Scandalous World of Olive Oil, publicado em dezembro de 2011, ainda sem edição brasileira. Doutor em história medieval pela Universidade de Oxford, Mueller escreve para grandes veículos americanos, como as revistas The New Yorker e National Geographic, e para o jornal The New York Times.

No livro, que mistura cultura gastronômica com reportagem, Mueller aponta os dois principais vilões da indústria do azeite italiano: Leonardo Marseglia, um dos maiores importadores do país, acusado de falsificar documentos para burlar impostos e vender óleos feitos fora da Europa como se fossem italianos; e Domenico Ribatti, um dos mais importantes atacadistas do mundo, que já foi preso por, entre outras coisas, fraudes como a descrita no início do texto: vender óleo de amêndoas da Turquia como azeite de oliva.

De acordo com Mueller, o óleo adulterado por Ribatti foi parar nos estoques de grandes empresas, como Nestlé, Unilever e Bertolli. Para tanto, o governo italiano teria feito vista grossa ao esquema de Ribatti. As empresas citadas por Mueller vendiam o azeite fraudado e ainda recebiam 12 milhões de dólares como subsídio da UE (União Europeia). Em resposta às investigações de Mueller, as companhias afirmaram que foram enganadas por Ribatti.

A situação chegou ao ponto de, no fim da década de 1990, o azeite de oliva ser considerado o produto agrícola mais adulterado na UE. Criou-se então uma força-tarefa para investigar a indústria do azeite. De acordo com um dos investigadores entrevistados por Mueller, o lucro da adulteração do azeite era comparável ao tráfico da cocaína, só que sem os riscos. Com o tempo, a UE diminuiu os subsídios para tentar reduzir o crime. Contudo, a fraude do azeite ainda é um grande problema e já atinge outras fronteiras.

Fraude no Brasil — De acordo com Rafael Barrocas, técnico do Ministério da Agricultura, a questão é matemática. "Há mais azeite no mercado do que todas as oliveiras no mundo conseguem produzir", diz em entrevista a VEJA. O técnico coordenou a elaboração do novo regulamento sobre o azeite de oliva no Brasil que entrará em vigor nos próximos meses. Barrocas conta que a Espanha pressionou o governo brasileiro no fim de 2007 para que o país tomasse alguma atitude contra o comércio de azeite fraudado. O país europeu é o segundo maior produtor de azeite do mundo, atrás apenas do Egito. O resultado foi a criação de uma regulamentação mais dura.

Com a legislação atual, o azeite importado é submetido a exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, do Ministério da Saúde. Com a nova regulamentação, o azeite terá de passar pelo crivo do Ministério da Agricultura, assim como frutas e cereais, por exemplo. Haverá então uma pré-avaliação para determinar o seu tipo.

A preocupação espanhola não é injustificada. Entre os integrantes dos Brics, o Brasil tem o maior mercado de azeite. Desde 2005, as vendas do produto tiveram crescimento de 235%, contra apenas 20% nos Estados Unidos, o segundo maior mercado mundial de azeite, atrás da União Europeia. Segundo o Conselho Internacional da Oliva, que supervisiona o mercado mundial de azeite, o Brasil foi o país que teve a segunda maior taxa de importação em 2011, 7%, entre os países que não são produtores tradicionais de azeitonas, atrás apenas da Rússia, com 9%.

O crescente mercado brasileiro atraiu grandes grupos produtores de azeite, como o espanhol Borges, que abriu uma filial no Brasil em 2009, mas também atraiu produtores criminosos.
Nelson Sakazaki, diretor técnico da Oliva (Associação Brasileira dos Importadores e Comerciantes de Azeite de Oliveira), diz que a associação faz 40 análises de adulteração de azeite por ano. "Já encontramos uma marca no Nordeste que vendia 95% de óleo de soja com corante em uma embalagem que diz 'azeite extravirgem'". Sakazaki explica que a adulteração do azeite é bastante simples. "Ele se mistura com qualquer óleo. Já encontramos até óleo de girassol sendo vendido como azeite de oliva", diz.

Sakazaki estima que 20% do azeite vendido no Brasil sofreu algum tipo de adulteração. As fraudes mais comuns são as misturas de óleos menos nobres, como soja e girassol, com o azeite de oliva ou com o óleo do bagaço da azeitona. A fraude, contudo, não é encontrada apenas nos produtos vendidos em supermercados. "Em muitos restaurantes, os proprietários misturam outras óleos diretamente na lata de azeite extravirgem e o consumidor, desavisado, não percebe", diz Sakazaki.

Jeito brasileiro - A detecção da fraude mais grosseira — quando o produtor mistura outros óleos com o azeite — é facilmente detectada. O problema, diz o químico Rodinei Augusti, é quando a adulteração mistura azeite extravirgem com azeite comum (saiba a diferença no quadro). "Como os dois azeites possuem as mesmas moléculas, o trabalho de identificação é mais difícil", diz. Augusti coordena o laboratório de Espectrometria de Massa da Universidade Federal de Minas Gerais. O grupo é especialista em técnicas para detectar alteração em produtos como cachaça, biodiesel e, mais recentemente, o azeite.

Usando uma espécie de balança de moléculas, chamada espectrômetro de massa, Augusti consegue identificar com apenas um mililitro de azeite, e em apenas um minuto, se o produto foi misturado a outras substâncias, inclusive azeites menos nobres. Mesmo que o óleo seja 99,5% puro, explica o químico, a técnica consegue detectar o 0,5% adulterado.

O espectrômetro de massa poderá se tornar uma alternativa viável para a fiscalização do azeite, analisa Augusti. O preço e o tamanho dessas balanças de moléculas vêm diminuindo nos últimos anos. Nos Estados Unidos, por exemplo, é possível encontrar modelos de tamanho semelhante ao de uma caixa de sapatos. As análises poderiam ser feitas diretamente em restaurantes e supermercados. De acordo com Barrocas, técnico do Ministério da Agricultura, o método desenvolvido na UFMG está sendo validado. "Temos interesse em técnicas mais simples e baratas", disse. "Porém, outros laboratórios precisam fazer o mesmo tipo de análise para que possamos adotar a metodologia."

Ouro líquido - A expansão do comércio do azeite é acompanhada de sucessivas descobertas dos seus benefícios à saúde. Pesquisadores espanhóis descobriram que o líquido contém substâncias que combatem a gastrite. Nos Estados Unidos, cientistas encontraram no azeite uma molécula que tem ação idêntica a de analgésicos. Outros estudos acharam evidências de que o azeite está associado à menor incidência de fraturas e tem ação preventiva contra tumores, como o de mama. Não é a toa que o azeite é apelidado pelos mediterrâneos de 'ouro líquido'.

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